CENAS DO COTIDIANO
A cidade, agitada, não dorme. Está, impotente, a ver a noite passar. O silêncio deixa-a só e parte rumo ao continente do descanso.
O galo, gaiato, “saído não se sabe de onde, rasga um canto desafinado”, a agitar a manhã, que vem surgindo apressada, e a enfurecer o corpo tão mal dormido.
No pulo da cama, o mirrado “zé ninguém” cega-se à casa. Não enxerga a companheira nem os filhos nem o seu fiel cachorro, comprado em dez vezes, sem juros. Só lhe resta um pedaço de pão, duro, a lhe rasgar a fome, que não teve tempo de se saciar com a fria marmita.
A cidade furiosa e insana lhe vai sugando a já combalida energia; e “zé ninguém”, que se autofagiou e se perdeu da família, busca numa tentativa, desesperadora, alimentar as contas bancárias estranhas e, cada vez, mais famintas.
O dia finda-se. Lá, fora, só resta a pressa de “voltar pra casa”. Mergulhado no mar de gente, alimenta o banguela e voraz ônibus, que lhe devora a força já tão débil. Desenxerga quem está sentado ao lado; desenxerga a praça e a a sua rosa solitária, dorminte, no canto esquerdo do jardim; desenxerga a sisuda ponte, a suster-se nas marés altas de muitas luas; desenxerga até a solícita praia, a lhe chamar, e lhe chamar, e lhe chamar. Vai. Vai alheio, sem um qualquer pensamento seu.
A noite, em sua ligereza, lhe “come” o sonho, perdido em um sono tão sobressaltado e vacilante, à espera “do gaiato galo” rodar a roda viva de uma outra e apressada manhã. Manhã, que talvez nem venha clamar por “zé ninguém”!
CENAS DO COTIDIANO II
No povoadozinho, dormia um sono solto e acompanhava os seus, ainda que esgotado da insana lida.
Do velho e esperado galo, esperava o canto, a despertar a barra do dia, no espetáculo mais espetacular de todos os outros espetáculos. Um mar de cores.
Os passarinhos, mais sábios que nós, despertavam felizes, a agradecer a nova alvorada. O fantástico e ensurdecedor alarido rasgava os sentidos de “zé alguém” em todos os tons!
Ao bem-ti-vi, alerta e canoro, só restava atiçar-lhe o sentido em todos os sentidos.
Pelo telhado, uma verdadeira peneira, invadiam-se tantos e tantos “raiozinhos de sol”, a gritarem que o “desacordar” chegava. Era hora de começar a labuta de todo dia.
Na casa de forno, o apogeu. O beiju, a exalar em todos os olfatos, ia “zumbinizando” o faminto do alimento sagrado.
A manhã seguia tranquila. E, de repente, só era quebrada a calmaria, com o mesmo grito, da mesma hora, a oferecer tudo. A dona de casa, alheia às suas preocupações, corria à porta e abastecia a faminta despensa, as suas panelas e fartava todas as bocas, que choramingavam em volta de sua saia.
A tarde, calma e dormente, era invadida pela verdadeira Babel. Piiróóléé, piiruuliitoo, algoodãoo dooce, piipoocaa. Fazia-se a mágica. Garrafas e litros brotavam em profusão. O escambo mais doce e justo realizava-se; e a saciedade a afogar a fome, que estava ali, sempre a espreitar.
À noite, o cabecear de sono era obra da velha Telefunken e do velho rádio Semp, que amoleciam o corpo, já tão em frangalhos; mas que dormia, sonhava belos sonhos e, até, contava co’outra promissora alvorada.
“Zé alguém” podia, enfim, ir labutar de novo!