HEROÍNAS ANÔNIMAS

Por Gracilene Pinto

Maria estava tendo um parto difícil. Embora não fosse parturiente de primeira viagem, que esse já seria seu terceiro filho, e a mulher estivesse fazendo toda força para ajudar, a criança não saía nem com reza mansa nem com reza braba. Parecia que todas as orações e súplicas à Nossa Senhora do Bom Parto e a São Raimundo Nonato, para que tivesse uma boa hora, não surtiam efeito. E a moça fazia força se contorcendo e gemendo, enquanto tentava manter a esperança de sobreviver ao parto. Ela e o filho. Mas, a verdade é que a confiança estava se esvaindo aos poucos.

Para piorar tudo, Maria já se encontrava em um estado perigoso de estresse, pois a parteira Salu, mulher experiente, pois que estava no ofício há muitos anos, ao invés de tranquilizá-la e orientá-la, ralhava o tempo todo com a pobre moça, chamando-a de fraca e “isgaenta”, e dizia ao nervoso Biné que Maria não estava ajudando e que acabaria matando a criança com seus “isgaio”.

Auxiliando no parto estava uma sobrinha de Biné chamada Ana. Uma adolescente de dezesseis anos recém-chegada da Capital onde fora fazer um curso de Auxiliar de Enfermagem-Parteira, curso este patrocinado pela Prefeitura local.

Ana tentava ajudar, porém, a parteira a empurrava e dizia que não precisava da ajuda de nenhuma pirralha recém-saída dos cueiros para fazer um parto, depois de trazer ao mundo uma centena de bebês.

Biné, por sua vez, apoiava Salu, e dizia para Ana ficar quieta e deixar quem já tinha experiência agir, pois a parteira sabia o que estava fazendo.

E Salu continuava em seu mal humor a resmungar contra Maria e a enfiar suas mãos, de unhas enormes e sujas, sabe-se lá com quantos milhares de bactérias, nas partes íntimas da parturiente.

O comportamento da parteira chegava às raias do absurdo. E Ana, que tinha aprendido sobre as infecções que poderiam advir da falta de assepsia e o modo de tratar com os pacientes, estava estarrecida. No entanto, não se sentia com forças para tomar uma atitude em virtude, não só da sua juventude como também da falta de apoio do tio, que ainda não tinha nenhuma confiança na sobrinha.

Além disso, naqueles lugares longínquos, onde não havia médicos e muito menos hospitais, as parteiras antigas eram consideradas autoridades da área médica. E, verdade seja dita, que a maioria delas foram verdadeiras heroínas e salvaram muitas vidas em um tempo em que era bem comum as mulheres não resistirem ao parto e chegarem ao óbito.

Porém, quando a esperança de um feliz desfecho já se desvanecia e alguns começavam a dar o caso como perdido, pois Maria já agonizava e Salu tentava puxar o nascituro pelo queixo com suas mãos nodosas, em vias mesmo de arrancar um pedaço do bebê, Ana lembrou-se que a parteira era muito amiga da primeira companheira de Biné. A ex-companheira detestava Maria, embora já estivesse separada de Biné há muitos anos. Mas, talvez ainda alimentasse alguma paixão recolhida pelo ex. Vai saber! Cabeça dos outros é universo onde ninguém passeia. Mas, o fato é que essa lembrança trouxe consigo a suspeita de que, talvez, ao invés de ajudar a parturiente, a intenção de Salu fosse deixar Biné livre para a amiga. Quem sabe Salu não desejasse a morte de Maria por solidariedade com a amiga, já que não conseguia esconder a antipatia?

Foi então, que Ana esqueceu o respeito à hierarquia da parteira velha, a autoridade do tio, e, esquecendo sua condição de adolescente recém-formada, assumiu uma autoridade e uma autoconfiança que nem ela mesma sabia ter, até então. E assim, empurrando Salu de forma enérgica, e até rude, assumiu o posto decidida a salvar a vida de Maria.

Fechando os olhos, como quem pede inspiração a Deus, Ana apalpou a barriga de Maria, já quase desmaiada, localizou o bumbum do bebê, e, sentou o joelho no vazio logo após, empurrando com força, o que fez com que a criança espirrasse para fora em um jato.

A pele do recém-nascido já estava arroxeando-se pela falta de oxigenação. Mas, nada que um tapinha no bumbum não pudesse resolver. Sobreviveram mãe e filho, para felicidade da família.

E foi desta forma que Ana, quase uma menina, mostrou-se uma verdadeira heroína e salvou a vida da primeira de muitas Marias que sobreviveram ao parto em suas mãos na Baixada do Maranhão.

A QUEBRADEIRA DE COCO BABAÇU

Por Gracilene Pinto

 

O mato todo ainda está molhado 

pelo sereno que cai nas madrugadas, 

e as ervas do caminho, perfumando, 

dão à mulher a paga das pisadas. 

Do chão subindo em nuances olorosas, 

que a brisa leve levanta pelos ares,  

seu cheiro doce invade a alma,  

se espalha nos palmares.  

A mulher olha o céu agradecida 

que ainda não seja o tempo da invernada.  

Mesmo sabendo que a água é que dá vida, 

com a chuva a tarefa é mais pesada. 

Finalmente, adentra o babaçual 

onde as altas e viridentes palmeiras 

generosas deitam ao chão seus cocos, 

sustento único de tantas quebradeiras. 

O cofinho, vai na cinta pendurado, 

Na mão direita o companheiro patacho, 

sua arma e instrumento de trabalho.  

Mesmo as coqueiras botando os cocos abaixo, 

vai que uma hora precisa cortar um galho? 

As palmeiras esparramam pelo chão  

seus frutos duros, tão duros como a vida, 

mas, vê-se logo também que não é vão 

aquele jeito todo de mulher atrevida. 

Juntando os cocos, na cabeça põe o cofo, 

e do seu peso não reclama, sequer geme, 

pois foi talhada para a lida, e seu estofo 

é de guerreira, a baixadeira nada teme. 

Em casa, logo começa o toc-toc… 

Na mão esquerda o coco enfrenta o afiado 

machado e sofre os golpes da manceta 

e as amêndoas retiradas com cuidado 

vão enchendo a cuia grande ao lado 

enquanto o cofo depressa se esvazia. 

Quebra o coco, tira o coco, põe na cuia… 

passa a mulher nessa labuta o dia inteiro 

e o toc-toc da manceta é boa música, 

pois, dessa lida é que lhe vem algum dinheiro. 

Trabalha e canta para espantar os males 

que não há remédio melhor que a alegria, 

e assim passa os dias, passa a vida, 

passam as mazelas que atormentam o dia a dia. 

E ninguém pense que a madrugada a vê insone 

a matutar na vida dura que a consome, 

após a prece, onde agradece a Deus por tudo, 

dorme feliz, pois conseguiu matar a fome.

AQUELAS MÃOS

Por Gracilene Pinto

(Para Odila dos Anjos, in memoriam).

Um pedaço de chão, 

Uma tamarineira, 

E em volta muito mato sem divisas,  

Sem cerca, sem moirões, 

Como a continuação 

Do campo que além se estende. 

Mais adiante um cajueiro, duas mangueiras, 

E é tudo que restou do velho casarão. 

Nada há que relembre os tempos idos! 

Nem a mangueira manteiga resistiu 

Com suas mangas tão doces, saborosas, 

Que faziam a disputa de quem a viu 

Carregada das frutas olorosas. 

Onde estão as escadas, assoalhos e porões? 

Onde o velho pêndulo do corredor, o lavatório? 

Onde estão aquelas ternas e meigas mãos 

Que me mimaram, cuidaram, e que de graça 

Me ofertaram tanto amor e atenção? 

Tábuas, tijolos, telhas,  

Nada restou do antigo casarão. 

Mas, como uma fada alvar 

A sua alma amiga 

Ainda povoa o lugar, 

E a voz antiga 

Que me ninava nos tempos de criança 

Ficou guardada em meu coração 

Na feliz lembrança 

Da mais linda canção, 

E da presença, que se faz  

Sem cheiro, toque ou cor, 

Em forma de saudade 

E do mais sublime amor. 

Nota: Odila era prima da avó da autora, morava em São Vicente Férrer/MA.

SÃO VICENTE FÉRRER, UMA HISTÓRIA DE FÉ

Por Gracilene Pinto

Dizem que tudo começou quando o Capitão de El-Rei, Luís Gonçalo de Guimarães começou a procurar o lugar Jabutituba para seu descanso e recreação, levado pelo clima aprazível e águas piscosas. Tais fatores, juntamente com a fertilidade da terra, levaram outras pessoas a pedir Cartas de Sesmaria para ali fincar raízes.

Segundo a saudosa professora Zazinha Costa, foi isto o que ocorreu com um português de nome José Gomes da Costa, o qual se fixou no lugar chamado Tapuio, e, mais tarde, seus descendentes vieram a fundar a Vila de Frexeira, com um traçado topográfico igual ao centro histórico da cidade, no lugar onde antes havia um aldeamento indígena.

O crescimento econômico da região deve ter sido o fator primordial para que em 05/11/1805 a Rainha de Portugal assinasse uma Provisão Régia desmembrando territórios de São Bento e Viana para criação de uma nova Freguesia consagrada ao sacerdote e grande pregador espanhol. Assim nasceu a Freguesia de São Vicente Férrer do Cajapió, com dois Distritos, sendo primeiro o de Frexeira e o segundo de Cajapió. Em 25/10/1830, o Vigário encomendado Francisco de Paula e Silva, agindo em nome do Arcebispo do Maranhão, Dom Marcos Antônio de Sousa, deixou provisão para edificação da Igreja Matriz. E, em 27/08/1856 a Lei Provincial nº 432 elevou a povoação à categoria de Vila.

Considerando que as sedes dos dois Distritos já existiam quando da criação da nova Freguesia, só a cidade de São Vicente Férrer completará 217 anos em 05/11/2022, comprovadamente. Bicentenária, portanto, o que está sobejamente comprovado com provas documentais. E a autorização para edificação da sua Igreja Matriz completará 192 anos em outubro de 2022.

Assim como seu padroeiro, São Vicente Férrer tem uma história de fé e de amor. Não só no nome. Mas, também na luta daqueles que, eclesiásticos ou leigos, consagraram sua vida à praticar e propagar o Evangelho de Jesus, lutando por um futuro melhor, sem esquecer de preservar os valores primordiais ao ser humano, resistindo às vicissitudes e mantendo a esperança no futuro, sempre confiantes na Providência Divina. Sim, São Vicente também ofertou filhos seus à Igreja Católica para o labor clerical e a divulgação do Evangelho.

Esta é a nossa Terra da Carambola, terra dos campos verdes e piscosos, das festas e procissões, das lendas e dos serões, comemorando 166 anos de Município e duzentos e tantos anos de existência, onde o povo audaz e valente sempre leva à frente o estandarte do amor e da fé!
Parabéns.
Por: Gracilene Pinto
PASCOM, São Vicente Férrer-MA, Missa, 27 de agosto de 2022.

O SONHO DE MARIA II

Por Gracilene Pinto

O sonho de Maria era a felicidade
da partilha, do amor,
da entrega irrestrita,
retrógrada e esquisita
para os adeptos da modernidade.
O sonho de Maria era,
aparentemente,
impossível, insolente,
inconsciente,
era irreal
beirando a insanidade.
Esqueceram-se todos
que, na verdade,
Deus é amor,
Deus é bondade,
e seu propósito para todos
é a felicidade.
E, sendo assim,
o sonho de Maria
tem um universo
de possibilidades.

GONÇALVES DIAS E DOM SEBASTIÃO, DUAS FIGURAS ENCANTADORAS (OU ENCANTADAS?)

Por Gracilene Pinto
Não sei se pela personalidade ou pelo caráter lendário de suas biografias, duas figuras da História sempre me encantaram: o monarca português Dom Sebastião e o poeta Antônio Gonçalves Dias.

Dom Sebastião, com o misterioso desaparecimento em Alcácer-Quibir, se imortalizou no coração do povo português, que ficou sempre à espera do seu retorno. No entanto, talvez em razão do clima tenso das lutas políticas em Portugal, em busca de paz Dom Sebastião haja escolhido a mais lusitana das províncias brasileiras, o Maranhão, para se encantar no repouso paradisíaco da Ilha dos Lençóis, onde o povo o recebeu com fé no coração: O Desejado Rei Sebastião.

Gonçalves Dias, nasceu em Caxias – Maranhão, mulato, de origem pobre, quando isso ainda era um verdadeiro estigma, por circunstâncias da vida estudou na Europa, foi poeta, advogado, jornalista, etnógrafo e teatrólogo, um expoente do romantismo e do indianismo brasileiro. Mas, entre tantos atributos foi a poesia que o imortalizou, quando cheio de saudades da Pátria escreveu Canção do Exílio, um dos mais belos poemas da língua portuguesa:
Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá…
Não permita Deus que eu morra sem que volte para lá…
sem qu´inda aviste as palmeiras onde canta o sabiá.
e, entre outros poemas maravilhosos da sua riquíssima lavra, quando escreveu a mais bela declaração de amor à paixão da sua vida, Ana Amélia Ferreira do Vale, o Ainda Uma Vez Adeus.
Enfim te vejo! – enfim posso, curvado a teus pés dizer-te
que não cessei de querer-te pesar do quanto sofri…

Por tudo isso, em 03/11/2020, dia em que se rememorava o falecimento de Antônio Gonçalves Dias a bordo do navio Ville Bologna, na Baía de Cumã, em Guimarães, me vi, de repente, pensando que, a despeito dos outros títulos auferidos por ele e de ser patrono da Cadeira nº 15 da Academia Brasileira de Letras, que eu saiba, o poeta não foi membro de nenhuma academia. Não precisou disso. Sua obra o imortalizou. E, quem sabe se, assim como a fé pública encantou Dom Sebastião na Ilha dos Lençóis, Gonçalves Dias não haja se encantado também nos baixios de Atins, de onde já podia avistar suas amadas palmeiras, mesmo que do sabiá só pudesse ouvir o canto na imaginação. Olha, que imaginação de poeta é coisa milagrosa! Acho até que foi por isso que pensei ter ouvido a voz de Gonçalves Dias afirmando cheio de certezas:
É mentira, não morri! Não morri nem morrerei Nem hoje nem nunca mais,
Minha alma já fez morada na pátria dos imortais.

O SONHO

Por Gracilene Pinto

Quantos caminhos trilharam os pés cansados
do viajante persistente e sonhador?
E quantos sonhos ficaram abandonados
à beira dos caminhos, onde ninguém voltou?
Das tantas lutas, quantas foram inglórias?
E as derrotas, alguém já conferiu?
O desistente que alcançou vitória,
o sucesso sem luta, quem já viu?
Sonho é projeto, tem causa e efeito,
e as grandes conquistas reclamam paixão,
sem luta, sem garra, viver não tem jeito,
que o sonho precisa de força e ação.

CHOVE

Chove lá fora…
E as águas que jorram do céu
Lavam árvores, montes,
Formam riachos
Escorrendo pelo chão.
Chove cá dentro…
E as lágrimas que tombam dos meus olhos
Sulcando a face
Lavam-me a alma,
Acalmam o coração.
A natureza é sábia,
E Deus que tudo sabe,
Tudo ouve e tudo vê,
Para lavar a alma
fez a lágrima,
Para lavar o mundo
Faz chover.
(in UM VÔO POÉTICO SOBRE ATHENAS – Imagem chuva no Maranhão)

A jaçanã e a flor de mururu

Por Gracilene Pinto

Do lago manso
O espelho refletia
As nuvens brancas
Naquele céu de abril.
E no remanso,
uma extensão se via
verde esperança
que o mururu
rebordando de lilás e azul anil
floria.
A inquieta jaçanã,
leve e faceira,
pousada, mirava-se nas águas,
ensaiando uma dança
Sem pejo e com alarde,
achando-se do lago
a dona verdadeira.
Lhe contestar, quem há de?!
Pensava, cheia de vaidade.
Se o Criador
lhe dera essa beleza,
Essa leveza e cores
De aquarela,
Que até faziam dela uma ave-flor?
Assim, desfilando sem cuidado,
pisando vai na flor do mururu,
tão delicada,
Que nenhuma outra há
que se compare
e jamais houve outra igual a ela.
Pois, no extenso jardim da natureza
a flor do mururu é entre todas
com sua humildade
a flor mais bela.

NÃO MORRI: Ao poeta Antônio Gonçalves Dias

Por Gracilene Pinto

Mas, quem falou que eu morri?!!
Não acreditem, é mentira!
Não morri!
Nem morrerei.
Nem hoje, nem nunca mais…
Minha alma já fez morada
na pátria dos imortais.
Não morri!
Minha alma vive.
Não só por algum registro
do meu nome nos anais
da História, da poesia,
quem sabe no coração
de alguém que me amou um dia…
Não morri nem morrerei,
pois, enquanto houver palmeiras,
sabiás, grandes amores,
trovas, versos e canções
troando na voz do vento
e falando aos corações,
estarei vivo na História,
e também no pensamento
de poetas e prosadores.
Perpetuarei na memória
muito além da plêiade lusa
que há de atravessar o tempo,
mas também da eterna musa
que canta e geme nas palmas
louvando as aves, as flores,
e imortalizando as almas
dos humildes cantadores.
Estou vivo no cantar
do poeta apaixonado,
que, louvando seus amores
chora sofrendo calado.
Não morri! Não morrerei!
Nem hoje, nem nunca mais…
Poesia é força vital,
por essa força viverei
e não morrerei jamais,
porque todo poeta é imortal!