Há uma fase da criança, que acho fantástica. Logo que ela começa a falar e começa a entender o que acontece ao seu redor; a se defender de nossas neuroses; a curiar tudo aquilo, que não temos a capacidade de responder.
E, muitas vezes, ficamos “apertados”, como bem diz “o cabôco”. Sem saída, sem respostas, sem ação. Deixo claro que falo da inocência, da criança, pura e sublime, que, em geral, nos recolhe ao silêncio, sem resposta, e nos deixa abatidos, sem chão e sem norte.
Não considero, aqui, a falta de educação, tão em voga, nestes modernosos tempos, resultante da degeneração da família, que “solta” a sua criança, de forma absurdamente irresponsável, ao léu, a desafiar todos, para sofrer só as amarguras da vida, mais tarde. E, de verdade, tenho observado algumas situações críticas em conversas, em filas de supermercados, em shoppings, em salas de aula, em aniversários, em festinhas escolares … Até cansei! Mas, jamais me canso de me revoltar ante o domínio da criança mal formada, a desafiar pais e mães, ausentes, que, com “uns sorrisinhos amarelos”, se perdem em suas irresponsabilidades.
Bom, não é este o real motivo da crônica. Louca explosão! Descambei na “vibe” do texto! Que o desabafo fique como uma revolta minha, em que tenho certeza de que não estou sozinho!
Voltemos! Voltemos! Falemos de situação, como a que passou um velho companheiro de boêmia, que repreendeu a sua “filhinha” de três anos e uma desconcertante resposta recebeu. Isso, depois da “menininha” o olhar com o cinto na mão e o “medir”, da cabeça aos pés, em seu um metro e oitenta. Agarrou-se-lhe às pernas e mandou direto e certeira. “Paizinho, tu é um gigante; eu, só uma piquinininha!” Besta! Que cacetada! Os seus braços ficaram bambos … e o que dizer do coração! Só sei que os olhos fugiram, e um gole seco lhe veio atravessar a garganta. Estava, definitivamente, vencido.
Essa é a inocência maravilhosa! Espetacular! E vitória da perspicácia infantil! Como a de uma criança, que deixou a mãe “incabulada”,diante de um pedido, incompreendido. É importante deixar claro que a mãe “talhava” uma blusa. “Filhinha, traz a tesoura, para eu cortar um dedinho, aqui”. A pergunta veio fulminante, junto com a tesoura e a mãozinha bem aberta. “Qual deles, mãezinha?!”
Já comigo a situação foi mais “difíci”. A curiosidade dos meus cinco anos me levou à ira da mamãe. Vou contar.
O meu avô Antônio do Rosário me chamou e me mandou, à casa de “seu’ Zé de Cristina, comprar banana maçã, que era a fruta de sua preferência. Quando cheguei lá, Cabo Isidoro “estava passando” e, “brincando”, perguntou a “seu” Zé. “Cumpâdi aquêli rapaiz já apareceo?!” “Seu” Zé lhe “respostou”. “Si êli aparecê, vô mandá é êli tomá ôndi ais pata tomo!”
Nunca, nunca, havia escutado essa expressão. Deixei as bananas e “vazei pra casa”. “Us ôios aceso, tinindo di curioso”. “Como um raio”, entrei na cozinha e, também, mandei direto e certeiro para mamãe. “Mãi, u qui é tomá ôndi ais pata tomo?!” Como um verdadeiro “raio”, as patas não tomaram, mas eu “tomei foi” um cascudo, e “bem criado”, na Baixa do Gedeão, acompanhado de “arguns ilugius”. “Piqueno seim vergonha, ôndi foi qui tu aprendeo isso?! Tu aprêndi só u qui num presta!” E outras coisitas mais.
“Foi uma luta danisca, e inglória pra eo ixpricar”. E, o pior, foi ela querer entender. O certo é que ainda passei bom tempo, “incucado” com isso. Tinha medo e vergonha de perguntar a alguém. “Vai qui ‘tomasse” outro ou outros cascudos, né?! Esses, sim, sabia eu que “tomava!”
Foi amplamente divulgado pela imprensa que, neste ano de 2023, ocorreu a maior seca dos últimos 10 anos na microrregião da baixada maranhense e causou a morte de milhares de peixes. Para os baixadeiros, esse fato é uma tragédia anunciada e provocou debates sobre a necessidade de construção dos Diques da Baixada, que ajudariam combater os efeitos da seca inclemente.
A ideia é compor uma COMISSÃO para elaborar a pauta para um SEMINÁRIO ou coisa parecida onde técnicos, estudiosos da Baixada e outras instituições públicas e privadas, prefeitos, técnicos do Governo, principalmente da área de infraestrutura, meio ambiente, etc. Nesse sentido, o presidente do Fórum em Defesa da Baixada Maranhense (FDBM), Expedito Morais, compilou as sugestões abaixo:
As ideias e ações discutidas e implementadas até agora no território da Baixada não foram suficientes para evitar tragédias como essas. Até porque, são intervenções (obras) localizadas e normalmente sem uma metodologia construtiva adequada;
Não existe até a presente data consenso entre os baixadeiros, técnicos, estudiosos e poderes públicos sobre os tipos de ações possíveis de serem implementadas e capazes de corrigir estes ciclos de escassez de água ou de excesso;
Os DIQUES DA BAIXADA, BARRAGENS DE ENSEADAS, AÇUDES, TAPAGENS – como alguns pensam, não serão a solução que a Baixada necessita. São de fundamental importância como parte de um conjunto de intervenção que provavelmente pode e deve acontecer;
Não vamos encontrar a forma de superar este ancestral desafio se não formos capazes de envolver todos os atores numa elevada discussão técnica, científica, para definirmos um Plano de ações concretas, razoáveis e possíveis;
Esta PRESIDÊNCIA está disposta a organizar este debate em ambiente apropriado e presencial. Não é possível tal discussão via WhatsApp;
Vamos formar uma comissão Organizadora e
O GOVERNADOR BRANDÃO quer saber o quê, como e quando podem ser feitas essas obras. Em conversa com EDUARDO e outros, demonstrou sua preocupação. Então, vamos às soluções. Será nossa grande oportunidade.
O apoio das leis da natureza é o estado de graça. (Deepak Chopra).
Banho tomado. Barba feita. Perfume exalando. Lá estava ele, pronto para mais um baile, em que fora formalmente convidado[1] pelo dono da casa.
Sentindo um leve remorso, por deixar seu irmão João Pedro em casa e, por cima, ainda ardendo em febre, apesar dos chás que lhe preparava a irmã Maria Santos.
Papai falava com tio João Pedro:
– Acho que não devo ir, e se você não melhorar?
– Já estou melhor, Zé, repetia o irmão enfermo.
Papai percebia que aquelas palavras eram apenas para que ele pudesse ir ao baile em paz.
Papai colocava a mão no pescoço do irmão e nada de a febre aliviar, estava igual brasa. Parecia até que a temperatura havia aumentado.
Mas afinal, o que ele poderia fazer? Maria estava cuidando do irmão. Poderia sim, ir ao baile tranquilamente.
Era inverno. Acondicionou sua roupa bem passada em uma caiambuca[2] e saiu, sempre conversando com o irmão que repetia:
– Vai, Zé, eu já estou melhor.
Na saída da casa na Jurema[3] existia um palmeiral[4] que se movia com a ação do vento, fazendo um barulho assustador.
Papai saiu em meio àquelas palmeiras. Logo percebeu que um temporal se avizinhava. Tinha a sensação de que as árvores cairiam naquela hora.
Voltou para casa correndo para que aquela situação melhorasse.
Conversou com o irmão enfermo que estava sentado na rede de dormir. Não chegou a chover. Era apenas uma ventania.
Na terceira vez que saiu de casa para ir à festa, novamente a tempestade se formou e José voltou para casa. No caminho de volta decidiu que não iria mais àquela festa, que não deveria mais insistir. Quem sabe o seu irmão pudesse piorar.
Naquela festa no Povoado de Poções o seu grande amigo Raimundo de Genoveva que atendia pela algunha de Raimundo Lagarto[5] foi duramente espancado, sofreu açoites de cassete e facão. Ficou muito doente e, dias depois, veio a óbito.
A conversa no dia seguinte era que os inimigos de Raimundo Lagarto iriam primeiro matar José Santos, para que o caminho ficasse livre para eles poderem matar seu amigo.
José Santos sabendo dessa história, não teve dúvidas: todos aqueles eventos, doença do irmão e tempestade, o livraram da morte naquele dia.
Sempre pensava como teriam ficado seus irmãos se ele fosse assassinado? Com essa experiência, ele jamais insistia. Seguia sua intuição, que ele tinha certeza de que vinha de Deus.
Papai tinha o hábito de não insistir, não teimar, não “forçar a barra”, viva na Graça. Cultivava a sua intuição.
Não raro, formávamos uma viagem, arrumávamos tudo e quase na saída, ele dizia:
– Eu não vou mais.
– Como assim? Já estamos prontos, já compramos a passagem!
Ele repetia:
– Eu não vou mais.
Os habituados àquela situação nem mais instigavam. Alguns queriam explicação:
– Por que o senhor não vai mais?
Ele não explicava, apenas desistia e procurava concentrar-se em outra coisa. Viagem desfeita. Negócio inconcluso.
Assim vivia meu pai: na Graça. Surfava na onda. Deixa a vida o levar. Sem pressa. Obedecia aos comandos da sua intuição e ponto final.
Ele contava a origem desse comportamento que ele definia como obediência a Deus. Foi exatamente no dia da festa em que seu irmão João Pedro estava doente e seu amigo foi morto que, após vários sinais, ele resolveu entender que não era para ele comparecer àquela festa em que estava preparado o seu assassinato.
Ontem (08/12/2023), o Jornal Nacional divulgou uma matéria que enfatizava as mazelas provocadas pela seca nos campos da Baixada. Na matéria aparece, em destaque, os campos “esturricados”, principalmente, do município de Bacurituba.
Por volta de 2013 a 2015 tive o oportunidade de conhecer melhor as questões mais emblemáticas da região da Baixada e Litoral Ocidental. Nesse período, como Secretário Adjunto da Secretaria de Desenvolvimento Social do Governo do Estado (Sedes), coordenei uma equipe que acreditava que as Barragens de Enseadas eram capazes de minimizar muito a calamidade causada pela seca.
Os campos que hoje estão esturricados, há seis meses estavam alagados ou submersos. Precisamos entender a diferença entre os Diques da Baixada e as Barragens de Enseadas e outros tipos de acumuladores de água.
Os DIQUES da BAIXADA, têm como principal função evitar o avanço de água salgada nos campos que margeiam a Baía de São Marcos ou que adentram pelos igarapés, principalmente no verão nas fases de lua cheia e nova.
A permanência de água doce, proveniente do período chuvoso, entre os aterros do dique e o campo não permanece o verão todo; em condições normais de médio inverno e média seca, nos meses de agosto para a frente já terá sofrido um abaixamento grande causado pela evaporação e percolação do solo. Poucos lugares ficarão com água acumulada até o inverno seguinte.
Porém, já existem inúmeras barragens de enseadas, açudes, diques de produção (réplica das valas de 12X200 metros que deu certo em ANAJATUBA), e outros tipos de acumuladores de água artificiais e lagoas naturais que minimizaram, ao longo desses anos, um pouco a extrema carência de água e pescado.
Como vimos, ontem na matéria jornalística, em Bacurituba, mesmo no meio dos torrões e capim seco, ainda, permanecia água e lama em alguns açudes, onde o gado mata a sede, mas morre atolado.
Conheci muito bem esse lugar, caminhando a pé na companhia do saudoso Xisto, então, prefeito do Município. Era um entusiasta deste tipo de prevenção.
Definimos uns cinco locais que o Estado do Maranhão, com recurso do BNDES deveria intervir, para construir 3 barragens de um teso a outro e duas seriam restauração e adequação.
Durante, aqueles 2 anos, fizemos levantamento de aproximadamente 100 locais possíveis deste tipo de intervenção. No final do Governo de Arnaldo Melo, os técnicos terceirizados do BNDES, engenheiros e assistentes sociais da Sedes deixaram aprovados recursos suficientes para construir mais de 50 barragens, inclusive Maria Rita. Ocorre, que no governo seguinte tinha gente que não via esse tipo de empreendimento capaz de trazer os benefícios esperados.
… venho filho das águas do velho e abençoado Pericumã. Venho ungido pelos campos verdes e pelo mais intenso azul, que abençoam a nossa querida Baixada.
… venho sustentado na sustança do angu com isca, da jabiraca seca e do chibé de leite.
… venho filho das famílias Pessoa e Do Rosário, que, mais do que o especial DNA, concretizaram em mim o hábito do diálogo, da responsabilidade, do respeito, do altruísmo, da paz e do amar.
… venho filho de José e de Maria, forjados em árdua lida, com o gritante e único intento de formar a sua prole, digna e professadora do bem.
… venho filho das tias, no sangue e no afeto, iluminado e abençoado por Maria do Socorro, Maria da Luz e Teresinha de Jesus.
… venho o reflexo, mais fiel e intenso, das mulheres da minha vida, que me formaram e me guiaram nos desafios do mundo; a se traduzirem nas lembranças eternas de minha avó Dedé e de minha mãe Zeca.
… venho caminhante firme, a me lançar nas veredas da vida, por ser aquinhoado com o porto seguro, mais seguro, a me ancorar nos sorrisos, nas verdades, nas certezas e nas saudades, que são os meus irmãos.
… venho companheiro e pai, a descobrir a força, a beleza e a magia de criar laços, novos e eternos, e de poder escrever a parte mais importante da história de minha jornada.
… venho mais leve e com o andar seguro, amparado no bem-querer dos meus tios, dos meus primos, dos meus sobrinhos, das minhas cunhadas; da minha mais nova família, a família Nefro; e nos gracejos, nas risadas e, até, nas lágrimas de cada amigo “amigo”.
… venho com os inesquecíveis Odorico Mendes (o Ovo Mole) e Colégio Pinheirense (o Cu de Pinto), os primeiros elos da minha caminhada, na vida escolar e intelectual, a serem a luz, que me guia na árdua e laboriosa luta por conhecimentos e por um viver digno e respeitável.
… venho no fogoso galope das bravias ondas, à procura de navegar outros, e muitos, desafios; e de me entregar, com intensidade, às letras; e de me tornar, definitivamente, nos mistérios das marés, das escadarias, das ladeiras e dos becos, Zé. Simplesmente, Zé!
… venho órfão e saudoso, a desbravar a Ilha, que sempre abraçou tantos filhos, deste imenso Maranhão, “famintos por saberes”.
… venho da área Itaqui Bacanga, velejando o Itapicuraíba, apregado às asas da ALEART, a adquirir e irradiar sabenças, sob as bênçãos e proteção do Anjo da Guarda.
… venho cativo das notas musicais de Lilah Lisboa, a minha patrona, a lhe “beber” a perspicácia feminina, a gana e a sabedoria, na busca por minha formação.
… venho adentrar esta magnânima Academia com a certeza de que estou entre intelectuais, que muito me ensinarão neste momento de minha caminhada; haja vista já ter sido presenteado com ensinamentos e vitais orientações, ao ter alguns de meus confrades como mestres, a exemplo de João Bentivi, Zefinha Bentivi, Hilmar Hortegal e Fernando Novais. E, nesta atmosfera, a ansiedade e a alegria invadem-me, por saber que passo a contar com a solidariedade e a sapiência de todos os demais membros desta importante instituição.
… venho vestido de boa vontade, de respeito, de afã por aprender, de orgulho por fazer parte desta egrégia Academia, a que, há muito, acompanho e admiro.
… venho, com toda minha humildade, pedir a Deus, que me oriente a ser um digno e produtivo “atheniense” nesta Casa.
… venho dizer a mais pura verdade: a Athenas Brasileira me tornou um baixadeiro ludovicense, cativo para todo o sempre.
Hoje me vi amanhecido, e “mufino”. E, com certeza, preguiça não é. É, sim, a sensação de “não tá no meu corpo”. “De não querê fazê nada”, e só contar os vãos das ripas do telhado, e imaginar alguma proeza, de preferência proibida, e voltar a ficar quieto. E isso não é normal. Até chorar, veio a vontade.
Acredito que o tempo, só “prometendo a chuva”, é o responsável maior disso.
A minha certeza é que não me prostrarei. Só me preocupa é não ter minha avó Dedé aqui, comigo, e receber “uma boa dose de oraçõezinhas”, “a mi fechá u corpo, levantá a arca caída i protegê a ‘fônti’, di todo i quarquer” mal.
E, se o problema é nervo trepado, com certeza, as mãos mágicas, dela, tudo resolveriam só com uma massagem à base de azeite de carrapato ou de andiroba.
O pior é “qui incontrei uns cunhicidos pur êssis dias i mi ilugiaro dimais. Acho, inté, qui tão cu’um grávi probrema di vista”. E, “tombéim, tô é cismado cum tanta festa, qui fizero pra mim”. “Queim sabe num veim daí essa lerdeza toda?!”
O certo é “qui tô achano qui tô cum quebranto”. E, para piorar, não conheço quem faça a “benzedura, pra quebrá êssi incanto.”
“Cumo num sô neium besta, num vô isperá pra vê u qui vai contecê di tão rúim cumigo, vô é logo, nu Mercado Centrá, arranjá arguns galinho di arruda i di pião roxo, imbebê êlis num restinho di pinga, qui tenho aqui, im casa, lá du Tubajara; mi incruzá, frênti i costa, nu caí da tarde; i procurá mi agasalhá, beim agasalhadinho, pra num pegá neium tiquinho di vento i ficá di miolo môli”.
E … “pra lá olho gordo!”
A noite estava amena naquela terça-feira, vinte e sete de outubro de 1965.
Os irmãos João e Manoel Pinto, primos da minha mãe por ser filhos de Mariana e Chico Pinto, de São Vicente Férrer, haviam embarcado cedo na lancha Proteção de São José, a fim de ter o privilégio de escolher um bom local para armar suas redes brancas de fio tecido.
Havia três lanchas ancoradas no Porto de Rapôsa naquele dia: Fátima, Maria do Rosário e Proteção de São José. É provável que a escolha desta última haja sido influenciada pela devoção familiar ao santo que lhe emprestava o nome. Mas, também pode ter sido simplesmente porque com o grande fluxo de passageiros e cargas, a lotação das embarcações se completasse rapidamente, razão pela qual as lanchas quase sempre viajavam com excesso de carga.
As três lanchas zarparam juntas do Porto da Raposa com destino à Capital do estado, o que talvez fosse uma estratégia de autoproteção dos seus comandantes para enfrentar a aventuresca viagem com mais segurança, já que a perigosa travessia em mar aberto era tarefa para mestres experientes, e que, com a escuridão da noite, punha à prova até mesmo a coragem de quem já lhe conhecia os percalços, como escreveu Batista Azevedo, e, mais tarde, Raimundo Corrêa Cutrim em seu livro Perfil da Baixada Maranhense. Viajando próximas umas das outras, poderiam mais facilmente auxiliar-se em algum eventual problem. Mas, a Proteção de São José seguia serena, até onde se pode usar tal palavra para designar a movimentação de quem navega nas águas nada mansas do Golfão Maranhense no segundo semestre do ano.
Tendo em vista não ser a primeira vez que encaravam tal aventura, os irmãos João e Manoel Pinto estavam tranquilamente deitados em suas redes perfumadas de oriza e confortavelmente embrulhados nos alvos lençóis, desfrutando da boa música que tocava no rádio a pilhas da lancha. Com o balanço da maresia, terminaram por adormecer.
Porém, eis que inusitadamente próximo ao Porto do Itaqui, na altura de Tauá Redondo, já em plena baía de São Marcos, a lancha Proteção de São José chocou-se com os arrecifes de uma croa, e, em questão de minutos, ocorria a maior catástrofe marítima que até hoje teve por palco o Maranhão, com a embarcação partindo-se e ocasionando a morte de cerca de 270 pessoas, que poucos foram os sobreviventes, pois a tragédia ceifou a vida da maior parte dos passageiros e tripulantes da embarcação.
Quanto aos irmãos João e Manoel Pinto, tão confortáveis se achavam em suas redes macias, que não despertaram nem mesmo com os gritos e o vozerio do povo, grunhidos e cacarejos dos animais ou com o ensurdecedor barulho dos motores, ficando sepultados na Baía de São Marcos, pois seus corpos nunca foram encontrados.
Testemunhos dos poucos sobreviventes, dão conta de que, no exato momento do acidente, no rádio sintonizado com a Rádio Difusora do Maranhão tocava a magistral “Valsa da Meia Noite”. Aquela mesma música cuja autoria é atribuída por uns a Nullo Romani (que a gravou juntamente com seu conjunto) e por outros a Frank Amodio, sendo, tanto um como outro, dois ilustres desconhecidos.
Entre os poucos sobreviventes que tive conhecimento, estão Bijuca Figueiredo Marques (o Bijuca do São Francisco, que nadou do Boqueirão até o Cais da Sagração, em São Luís, onde chegou vivo, mas em estado tão lastimável, que sequer conseguia manter-se em pé); Pedrinho Duarte e sua esposa Dona Marinete (única mulher a se salvar), os quais perderam no sinistro sua primeira filha, de menos de dois meses; Pedro de Geraldo; Sandaia; Batista de Pacherá e Quidinho.
De algumas das vítimas, como os irmãos João e Manoel Pinto, Francisco Pires Corrêa, Bijuca do Goiabal e Zenaide Aranha, sequer seus corpos foram encontrados.
Em São João Batista, por iniciativa do então Vereador Zezi Serra, foi sancionada uma Lei Municipal que tornou o dia 27 de outubro, dia do naufrágio da lancha Proteção de São José, feriado municipal, em memória daqueles que sucumbiram nas águas da Baía de São Marcos.
Em São Vicente Férrer a “Valsa da Meia Noite” passou a ser considerada sinônimo de luto, tão grande é o poder da música que fica registrado como um verdadeiro marco em nosso espírito. E, a partir de então, Batista Souza, mais conhecido como Batista de Nhoí, proprietário do sistema de difusão sonora por autofalantes naquela cidade, enquanto viveu, antes de transmitir qualquer notícia fúnebre, sempre tocava a magistral Valsa da Meia Noite, honrando a memória, não só do falecido naquele momento, mas também dos conterrâneos vitimados na tragédia de 27 de outubro de 1965.
Muitos são os autores que deixaram marcadas com suas “penas” as páginas da literatura universal. No entanto, apesar de clássicos, ficam esquecidos como nota de rodapé de velhos livros empoeirados. É evidente o desconhecimento de grande parte dos brasileiros em relação a um dos maiores escritores do século 20 que, juntamente com outros dois ingleses, C. S. Lewis e J. R. R. Tolkien, se tornou um clássico da literatura universal.
Gilbert Keith Chesterton, também conhecido pela sigla G.K.C., ou apenas Chesterton, nasceu em Kensington, distrito central de Londres, em 29 de maio de 1874. Batizado no Anglicanismo, desde cedo sentiu um chamado da Igreja Católica, à qual se converteu em 1922, aos 48 anos de idade. Chesterton é um desses homens de letras muito difícil de classificar, pois era romancista, poeta, crítico literário, ensaísta, polemista, apologista, jornalista, biógrafo, cartunista e filósofo. Os escritos chestertonianos se compõem de frases geniais e paradoxais, que, mesmo tomadas isoladamente, nos permitem ver a lucidez de seu pensamento. Seu bom humor era tamanho que, perguntado certa vez por um jornalista que livro levaria para uma ilha deserta, respondeu: “Um manual de como construir uma canoa”.
Filósofo do senso comum em um século marcado pela exaltação alucinada da razão, chamado a prestar contas sobre todos os mistérios entre o céu e a terra, Chesterton também bateu de frente com o pensamento dos céticos, a quem certa vez se referiu nestes termos: “Nossos céticos modernos sempre começam afirmando aquilo em que não acreditam. Mas mesmo de um cético queremos saber primeiro o que ele faz crer. Antes de discutir, queremos saber o que não precisamos discutir. E essa confusão aumenta infinitamente pelo fato de que todos os céticos do nosso tempo são céticos em diferentes graus de dissolução do ceticismo.” (Philosophy for the Schoolroom).
Os escritos chestertonianos se compõem de frases geniais e paradoxais, que, mesmo tomadas isoladamente, nos permitem ver a lucidez
de seu pensamento
Escreveu os livros Ortodoxia (1908), The Heretics (1905), O homem que foi quinta-feira (1907), São Francisco de Assis (1923), O Homem Eterno (1925), A Inocência do Padre Brown (1911), Santo Tomás de Aquino: biografia (1933), obra a que Étienne Gilson assim se referiu: “Chesterton desespera qualquer pessoa. Estudei Santo Tomás a vida inteira e nunca teria sido capaz de escrever um livro como este.” […] E conclui dizendo que “Chesterton foi um dos pensadores mais profundos que existiram. Era profundo porque tinha razão, e não podia deixar de tê-la; mas tampouco podia deixar de ser modesto e amável; por isso, considerava-se um entre muitos, desculpava-se de ter razão e fazia-se perdoar a profundidade com o engenho”.
Por meio do livro A Inocência Do Padre Brown, ele se tornou mais conhecido no Brasil. G.K.C. criou um personagem muito diferente daqueles que normalmente povoavam a literatura policial, como os detetives C. Auguste Dupin, de Allan Poe, e Sherlock Holmes, de Conan Doyle. O detetive que descobre os casos insólitos é um simples sacerdote, Padre Brown, que aparenta ingenuidade, mas age com incríveis perspicácia e agudeza investigativa.
Escreveu também mais de quatro mil artigos. Durante 30 anos colaborou semanalmente com o Illustrated London News e, ao longo de 13 anos, escreveu para o Daily News, além dos textos diversos que redigiu para o seu próprio jornal, o G.K.’s Weekly. Chesterton valia-se desses espaços para combater a mentalidade modernista, cientificista e reducionista. Travou longas batalhas com intelectuais como George Bernard Shaw, Herbert George Wells, Bertrand Russell e Clarence Darrow.
Estabeleceu uma amizade fecunda com Hillare Belloc, levando um dos seus opositores a se referir aos dois como o “monstro biforme Chesterbelloc”. Eles são os autores do Distributismo (ou Distribucionismo), teoria política crítica do capitalismo e do socialismo sob inspiração cristã. Para eles, a propriedade privada não deveria ser abolida, e sim impedida de se concentrar nas mãos de uns poucos. “O problema do capitalismo é que não há capitalistas suficientes”, afirmava Chesterton.
Também recebeu elogios de Jorge Luiz Borges, que se referia a ele como “um homem de gênio, um grande prosador e um grande poeta. A literatura é uma forma de felicidade, talvez nenhum escritor me desse tantas horas felizes como Chesterton”. Intelectuais brasileiros como Gustavo Corção e Alceu Amoroso Lima foram influenciados pelas obras do inglês. Apesar de desconhecido da grande maioria dos leitores brasileiros, artigos e livros de Chesterton têm sido traduzidos por iniciativa, entre outros, do professor Antônio Emílio Angueth, do Instituto de Ciências Exatas da UFMG. Tarefa que não é nada fácil, dada a dificuldade em reproduzir o sentido irônico e paradoxal de que muitas vezes Chesterton, como bom inglês, se utiliza para combater os adversários.
Chesterton morreu em 14 de junho de 1936, em sua residência, em Beaconsfield. É uma pena que não seja tão conhecido no Brasil; devemos tornar visível e acessível à nossa língua a obra desse gigante. Se vivo fosse, certamente não se preocuparia com o fato de seu desconhecimento entre nós. Pelo contrário: talvez até demonstrasse um esboço de sorriso e pensasse na frase registrada no livro All things considered: “Clássicos são escritores que podemos elogiar sem nunca tê-los lido.”
*Estudante do 7° Período de Biblioteconomia da Escola de Ciência da Informação, bolsista Fapemig de Iniciação Científica no projeto Modelagem Conceitual para Organização Hipertextual de Documentos (MHTX)
Não sei se pelo viés quase lendário da sua história com Ana Amélia; pelo caráter passional das suas obras românticas e nacionalistas, que casam tão bem com minha natureza poética; ou mesmo por seu natural poder de sedução, Gonçalves Dias sempre me encantou.
O poeta consegue seduzir até depois da vida.
Acresce a isso, o fato de eu ter lido durante toda a adolescência na parede frontal do Ginásio Costa Rodrigues os célebres versos da Canção do Tamoio:
“Não chores, meu filho; Não chores, que a vida É luta renhida: Viver é lutar. A vida é combate, Que os fracos abate, Que os fortes, os bravos Só pode exaltar.”
Certo é, que desde muito cedo me senti fascinada pelo poeta maranhense, por seu histórico de vida e pelos seus versos, que declamei muitas vezes.
Há um poema dele que me inebria sobremaneira intitulado Leito de Folhas Verdes:
Por que tardas, Jatir, que tanto a custo
À voz do meu amor moves teus passos?
Da noite a viração, movendo as folhas,
Já nos cimos do bosque rumoreja.
Eu sob a copa da mangueira altiva
Nosso leito gentil cobri zelosa
Com mimoso tapiz de folhas brandas,
Onde o frouxo luar brinca entre flores.
Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,
Já solta o bogari mais doce aroma!
Como prece de amor, como estas preces,
No silêncio da noite o bosque exala.
Brilha a lua no céu, brilham as estrelas,
Correm perfumes no correr da brisa,
A cujo influxo mágico respira-se
Um quebranto de amor, melhor que a vida!
Gonçalves Dias é, e eu me refiro a ele no presente porque ele continua vivo dentro de cada poeta, de cada coração maranhense, uma criatura tão sedutoramente especial que, até seus ídolos depois de conhecer suas obras, viravam seus fãs.
O consagrado português Alexandre Herculano, por exemplo, não só se tornou um fã, e mais tarde amigo também, como, após ler seu primeiro livro, “Primeiros Cantos”, escreveu elogiosa crítica ao trabalho do poeta e maior expoente do romantismo e do indianismo brasileiro.
Baixinho, feiinho fisicamente, e mulato, quando isso ainda era um verdadeiro estigma, além da origem pobre, Gonçalves Dias nasceu na maranhense Caxias em 10/agosto/1823, filho de um comerciante português de Trás-os-Montes com uma mestiça brasileira. O pai, logo separou-se da mãe e deu-lhe uma madrasta, que por sorte o estimou.
Revelando ainda muito cedo inteligência e talento, tanto que, desde a meninice demonstrava paixão pela leitura e aos 10 anos de idade já fazia a escrituração simples da loja do pai, este desejou tivesse o filho uma educação que lhe possibilitasse desenvolver o intelecto e garantir-lhe um futuro promissor. Infelizmente, seu genitor faleceu antes de pôr em prática tal projeto.
No entanto, a estrela do garoto brilhava, e havendo recebido apoio da madrasta e de outros mais, tais como, o Juiz da Comarca Dr. Antônio Manuel Fernandes Júnior (que depois foi desembargador) e uma comissão de conterrâneos, os quais contribuíram com quotas mensais para subsidiar ao menino a fim de que pudesse ir estudar em Coimbra, onde se tornou, além do poeta que era por nascimento, advogado, jornalista, etnógrafo, teatrólogo, ensaísta e articulista (artigos que ele escrevia, geralmente, sobre suas viagens de estudo para o Amazonas e demais lugares do Nordeste, e até alguns países europeus e Oceania, onde esteve em missão governamental).
Foi assim que o menino franzino, Antônio Gonçalves Dias, tornou-se um intelectual, um poliglota, que, entre outras línguas, dominava o alemão e escreveu até um dicionário de Língua Tupi, que dizem ter sido encomendado por Dom Pedro II.
Elogiado e paparicado por todos no Brasil e em Portugal, em razão do seu talento, tinha dificuldade, no entanto, de obter os resultados materiais necessários à sua subsistência. E, apesar dos elogios que choviam sobre os seus escritos, também não estava livre dos desgostos causados por algumas críticas infundadas.
Por exemplo, tendo enviado por outra pessoa os dois dramas escritos em Coimbra, Patkull e Beatriz Cenci, ao Presidente do Conservatório Dramático (não queria que soubessem que os textos eram de sua autoria para não ter um julgamento avaliado e aprovado em homenagem ao seu nome), descobriram nos textos os avaliadores mil defeitos e galicismos imperdoáveis.
Magoou-se o poeta ante a injustiça sofrida, pois sabia-se um purista, e despicou-se escrevendo Sextilhas do Frei Antão. O tipo de vingança das pessoas grandiosas de espírito.
Em outra ocasião, em carta enviada ao seu amigo Teófilo Leal, Gonçalves Dias queixava-se de ter postulado junto aos amigos que o apresentassem ao imperador, o que ainda não acontecera.
“… nossos grandes homens – disse ele – recebem-me com a carinha d´agua, namoram-me quase como se eu pudesse dispor de alguns votos, e estou certo que se for bem recebido pelo Imperador, a quem terei a honra de ser apresentado um destes dias, ninguém será mais festejado, mais gabado… pois, veremos se os bons olhos do nosso monarca farão mudar a minha sorte; de promessas já estou farto… qualquer dia.”
No entanto, mais tarde foi efetivamente apresentado ao Imperador. E dizem ter sido Dom Pedro II um dos correspondentes com quem ele se comunicava com assiduidade. É verdade que pelo governo imperial foi encarregado de cumprir algumas missões.
Provido a Secretário e Professor de Latim, do Liceu de Niterói, Gonçalves Dias recebia um magro salário que mal dava para garantir-lhe o sustento. E, quando as cadeiras do Liceu de Niterói foram extintas, para sobreviver com decência, fazia extratos das sessões da Câmara dos Deputados e também artigos humorísticos e folhetins para o Correio Mercantil. No ano seguinte foi redator dos discursos do Senado para o Jornal do Comércio.
Finalmente, em 1849, foi nomeado Professor de História Pátria e Latim, do Real Colégio Pedro II. Esse emprego, que era desejado pelo poeta, se não era algo soberbo quanto à questão financeira, juntamente com os resultados advindos da pena literária lhe garantiria certa estabilidade e folga.
Encarregado pelo Ministro do Império, Visconde de Monte Alegre, de coletar nos mosteiros e arquivos das câmaras municipais e secretarias das províncias ao Norte da Corte do Império os documentos mais importantes para o Arquivo Público, bem como, avaliar as condições da instrução pública nessas províncias, começou Gonçalves Dias por São Luís do Maranhão, a fim de abrandar as saudades da terra natal, pois dizia:
“Minha alma não está comigo… está a espreguiçar-se nas vagas de São Marcos, a rumorejar nas folhas dos mangues, a sussurrar nos leques das palmeiras…”
Mas, deixemos de lado os dados biográficos. Afinal, de tanto que já foi falado sobre ele neste seu bi-centenário, essas informações quase todo mundo já sabe.
Igualmente, não quero falar sobre o Gonçalves Dias funcionário público administrativo, que, nessa fase da sua vida pouco tempo dispunha até para sua verdadeira produção literária, e se decepcionava com os compatriotas, pois dizia:
“Tudo nesta terra é divino, exceto o homem que a habita.”
Vamos nos ater ao poeta e ao seu lado romântico, porque, entre tantas qualidades, atributos e conquistas, foi a poesia que o imortalizou definitivamente, quando, cheio de saudades da Pátria, escreveu a sua Canção do Exílio, um dos mais lindos poemas da língua portuguesa que, de tão belo e tão cheio de brasilidade, os compositores do Hino Nacional Brasileiro lhe roubaram alguns versos para mais enriquecer sua obra:
Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá
As aves que aqui gorjeiam
Não gorjeiam como lá…
…..
Não permita Deus que eu morra sem que volte para lá.
sem qu´inda aviste as palmeiras onde canta o sabiá.
Eu sempre acreditei que o que imortaliza o ser humano é sua obra, seu legado. E o que imortaliza o escritor é a sua capacidade de expressar os sentimentos de modo a perpetua-los no imaginário popular através dos tempos.
De nada adiantam os títulos e as loas momentâneas, se a obra não tiver a força suficiente para se consagrar no imaginário popular e transcender no tempo, porque as criações morrerão com o autor. A obra que não conseguir falar ao coração de gregos e troianos, dos intelectuais aos indivíduos mais simples, não terá cumprido seu papel.
Por isso, considero que, o que realmente imortalizou Gonçalves Dias não foi só sua intelectualidade, a métrica, a erudição e o romantismo dos seus versos, mas, foi o modo como expressou suas emoções com tal profundidade, que fez com que sua obra conseguisse tocar no coração das pessoas e mexesse com os sentimentos mais lídimos, mesmo depois de passados dois séculos.
Tudo isso, somado ao seu lendário e transcendental romance proibido com Ana Amélia, mexe com o imaginário popular, com a alma dos indivíduos, que se colocam no lugar do amante sofredor, para também vestir o manto do amor vitimado pela incompreensão.
Todo mundo está careca de saber que Gonçalves Dias era apaixonado por Ana Amélia Ferreira do Vale. Embora, nas horas vagas, também haja se apaixonado por uma dúzia de outras mulheres, como Céline, em Bruxelas; Leontina e Natália, em Dresden, na Alemanha; Joséphine e Eugénie N., em Paris, (por causa desta última Gonçalves Dias enfrentou a maior treta com a esposa, pois Olímpia, não se sabe como, teve conhecimento da relação dos dois e das cartas trocadas). Isto, sem falarmos na outra Amélia, a Amélia R., uma brasileirinha filha de um alto funcionário do Tesouro, que o conheceu enquanto passeava na Europa em companhia da mãe, e, com Gonçalves Dias, idealizava projetos de casamento futuro, sonhando acordada com o filhinho que teriam, que deveria chamar-se Antoninho.
Enfim, um sedutor por excelência é o que foi o nosso Gonçalves Dias. A todas cortejava, à todas fazia promessas, e à todas piedosamente mentia, segundo a necessidade do momento.
De acordo com Manuel Bandeira, estudioso e biógrafo de sua vida e obra
“nem o trabalho exaustivo das comissões, nem o peso dos íntimos desgostos, ser-lhe-iam entrave ao vezo de namorador impenitente… aquele homenzinho de um metro e cinquenta, coração agora ulcerado pela paixão de Ana Amélia, continuava o mesmo autêntico devastador de corações femininos, e nesta matéria aproveitou gulosamente as suas folgas de tempo nos quatro anos de Europa. O poeta queixava-se, era um chorão, mas o homem agia. Era junto às mulheres, como o viu João Francisco Lisboa, na festa de N. Sra. dos Remédios. Sabia falar, tinha lábia inesgotável.”
Porém, isto, ao meu modo de ver, não significa, absolutamente, que não tivesse amado à Ana Amélia, ou que estivesse sempre mentindo para as outras Amélias.
Quero mesmo crer que, no momento em que fazia promessas e juras às namoradas, fosse realmente o que sentia naquele momento o seu volúvel coração de poeta.
Ou, quem sabe, muitas vezes mentisse apiedado por não conseguir sentir com a mesma intensidade a paixão despertada. Talvez a mentira fosse apenas um modo de retribuir de alguma forma o afeto recebido e não deixar a parceira constrangida por tê-lo amado.
Quanto à Ana Amélia, seria verdadeiramente amor o que sentia pelo poeta ou apenas uma fantasia criada graças à proibição familiar?
Segundo o testemunho de um tal de Onestaldo de Pennafort, genro de um sobrinho de Ana Amélia, ela, que tinha um tipo mignon, vivos olhos negros e rasgados, e uma tal expressão de doçura e simpatia envolvente, nunca esqueceu de todo o poeta, e sobre ele, ainda na velhice, discorria com arroubos de sentimento. Foi uma musa digna do poeta. Não obstante, seguiu sua vida, chegando a casar-se duas vezes.
E Gonçalves Dias, seria Ana Amélia sua alma gêmea ou apenas uma espécie de fata morgana, uma imagem idealizada do amor proibido que não pudera exaurir as emoções como devia?
Não se pode descartar de todo que Gonçalves Dias talvez não amasse verdadeiramente nem Ana, nem Amélia, nem Olímpia… amasse somente a ideia de um amor perfeito. E assim, impossiblitado de ter em seus braços sua musa, imortalizou-a em seus versos, e amou-a tanto quanto alguém pode amar.
Mas, também seguiu sua vida e casou-se com Olímpia, com quem teve uma filha, que, infelizmente, não viveu por muito tempo.
É provável que, a seu modo, Gonçalves Dias tenha sentido algum afeto por Olímpia, pois casou-se com ela. Mas, o gênio forte desta, aliado à inquietude do marido, não permitiram que entre os dois fomentasse um amor do mesmo calibre e com o mesmo lirismo, a mesma transcendentalidade do amor que devotou à Ana Amélia.
Porque o amor que sentimos por uma pessoa nunca é igual ao que sentimos por outra. Somente nas almas que do além se reconhecem, os corações pulsam no mesmo tom.
E penso que, somente um amor assim, transcendental, poderia haver inspirado Gonçalves Dias a escrever, entre os outros tantos poemas maravilhosos da sua lavra, a mais bela declaração de amor em forma de poema que se conhece à paixão da sua vida, quando reviu Ana Amélia anos depois em Lisboa. Estou falando de Ainda Uma Vez Adeus.
“Enfim te vejo! — enfim posso,
Curvado a teus pés, dizer-te,
Que não cessei de querer-te,
Pesar de quanto sofri.
…………..
Adeus qu’eu parto, senhora;
Negou-me o fado inimigo
Passar a vida contigo,
Ter sepultura entre os meus;
Negou-me nesta hora extrema,
Por extrema despedida,
Ouvir-te a voz comovida
Soluçar um breve Adeus!
Lerás, porém, algum dia
Meus versos d’alma arrancados,
D’amargo pranto banhados,
Com sangue escritos; — e então
Confio que te comovas,
Que a minha dor te apiade
Que chores, não de saudade,
Nem de amor, — de compaixão.
O fato é que, quando se fala em Gonçalves Dias lembra-se logo de Ana Amélia. Ninguém pensa nos seus outros amores. Porém, sem querer de forma alguma desdourar a imagem do poeta, nem desmerecer seu amor pela maranhense, eu sempre me pergunto: teriam Ana Amélia e Gonçalves Dias sido felizes, se houvessem concretizado esse amor ideal, casado, gerado filhos, e vivido a rotina normal de qualquer casal?
Pode ser que sim, pode ser que não.
Talvez nem chegassem realmente até o casamento, porque muitas vezes a oposição familiar acaba dourando uma pílula, que afinal pode ser amarga, exacerbando em nós o desejo de possuir aquilo que nos é proibido. Isso, muitas vezes já restou comprovado. É o poder da ausência sobre a presença. Tanto que, muitos dos melhores textos de autores maranhenses foram escritos quando estavam fora do Maranhão. Gonçalves Dias não fugiu à regra, sublimando tal premissa com a Canção do Exílio.
Consideremos que, Gonçalves Dias era um poeta, um romântico passional de alma inquieta, alguém que não se satisfaz com menos que a plenitude de um encontro de almas. Um homem cuja intelectualidade e expressividade verbal seduzia tanto às mulheres quanto aos homens. Os homens no sentido da amizade sincera. E, como poeta, incapaz de se ver refletido nuns olhos cheios de paixão sem empatizar-se com esses olhos, e com a dona dos tais olhos, fossem esses espelhos da alma negros, verdes, azuis ou castanhos.
Teria Ana Amélia a fleuma, a sabedoria necessária para manter a harmonia do lar casada com um mulherengo, ou o poeta teria aquietado o coração se estivesse nos braços da sua musa?
Não é demais lembrar novamente que ela, apesar de não haver esquecido o poeta dos belos versos e falar sedutor, como há testemunhos, foi capaz de reconstruir sua vida e casar-se e ter filhos com outros, pois casou-se duas vezes.
Eis a questão que nunca se conseguirá responder!
Isso acontece com os poetas e cantores, com os cantadores de boi, que volta e meia pelos arraiais maranhenses despertam desses amores efêmeros nas expectadoras. Estas, atraídas muitas vezes somente beleza da música e da voz, que nem todos os cantadores tem a sorte de ser fisicamente bonitos. Mas, tem carisma. E contam com a magia da música, que é embriagante. E, convenhamos, Gonçalves Dias não era bonito fisicamente. Mas, com certeza tinha muito talento e carisma. Tinha molho. Daí fazer o estrago que fazia.
Eu, de fato acredito na sinceridade das declarações de amor de Gonçalves Dias por Ana Amélia. Afinal, foi um sonho que não se realizou, ficando apenas na dimensão do ideal, e isso tem bastante peso.
Mas, não desacredito também da sinceridade do poeta quando fazia suas promessas e demonstrações de afeto pelas outras Amélias que passaram por sua vida.
Talvez, nos momentos de paixão, ele próprio irrefletidamente acreditasse no amor que dizia sentir. Porém, passado o arroubo, conseguia ver o quanto fora impulsivo e talvez lhe viesse um arrependimento tardio. Quem sabe?
Amigos, a verdade é que Ainda Uma Vez Adeus, mesmo passados tantos anos, ainda emociona a todos. E a Canção do Exílio, tão simples e eloquente, ainda hoje se impõe como o primeiro poema do simbolismo no Brasil, e, Gonçalves Dias, segundo Carpeaux, foi “o primeiro poeta verdadeiramente nacional”, também classificado por José Veríssimo como “o maior e mais completo poeta do Brasil”.
Deste modo, para felicidade geral da Nação, o melhor mesmo é deixarmos de lado os alvitres e digressões filosóficas e aceitar a corrente que idealiza o amor através de Gonçalves Dias e Ana Amélia. Assim também viveremos felizes para sempre com nossas convicções.
Pois, foi lembrando da saga de Antônio Gonçalves Dias que, em 03/11/2020, dia em que se rememorava o falecimento do poeta a bordo do navio Ville Bologne, na Baía de Cumã, eu me vi, de repente, meditando que, a despeito dos outros títulos auferidos por ele, a despeito de ser patrono da Cadeira nº 15, da Academia Brasileira de Letras, que eu saiba, o poeta não foi membro de nenhuma academia, só do Instituto Histórico, não precisou disso. Foi a sua obra que o imortalizou.
Imaginei também que, que se a fé pública pode encantar Dom Sebastião na Ilha dos Lençóis, quem sabe também Gonçalves Dias não esteja encantado na Baía de Cumã, de onde já podia avistar suas amadas palmeiras, mesmo que, do sabiá só pudesse ouvir o canto em sua imaginação? Mas, convenhamos, imaginação de poeta é coisa milagrosa!
E, naquele momento até pareceu-me ter ouvido Gonçalves Dias afirmando cheio de certezas:
mentira, não morri!
Não morri nem morrerei,
Nem hoje nem nunca mais.
Minha alma já fez morada
Na pátria dos imortais.
Palestra de Gracilene Pinto na AMEI, 21 de agosto de 2023
Ao comemorar os 200 anos de nascimento do poeta Gonçalves Dias, o presidente da Academia Maranhense de Letras, escritor Lourival Serejo dissecou, para O Imparcial, pontos importantes da obra fenomenal de caxiense da Canção do Exílio.
“Estamos mantendo acesa a vela da imortalidade do nosso maior poeta, que merece todas as homenagens do Maranhão e do Brasil”, disse ele.
Para Lourival Serejo, a Canção do exílio “é uma canção inserida no movimento romântico, mas com as tintas do estilo e das inovações técnicas do gênio do poeta de Caxias”. Acredita que o poeta foi “impulsionado pela saudade da pátria” ao elaborar o poema mais sublime do romantismo brasileiro”. Até o Hino Nacional captou dois versos da Canção0 do Exílio em sua composição.
Goncalves Dias, poeta maranhense nascido em 10 de agosto de 1823
“Afinal, Gonçalves Dias foi também etnógrafo, historiador, jornalista, cronista e dramaturgo. No magistério, destacou-se como professor no Colégio Imperial Pedro II e na intensa pesquisa que fez sobre nosso sistema educacional, conta Lourival, na entrevista abaixo:
O que levou a Academia Maranhense de Letras comemorar o bicentenário de Gonçalves Dias?
Comemorar o bicentenário do Poeta Nacional, o maior poeta do romantismo brasileiro, não é uma efeméride qualquer. Como maranhenses, como acadêmicos responsáveis por manter acesa a vela da imortalidade, é nosso dever festejar essa data, que não se reduz a 10 de agosto, data do seu nascimento, mas ao ano inteiro. Gonçalves Dias merece todas a homenagens do Maranhão e do Brasil.
Qual a importância de Gonçalves Dias para a poesia, a literatura, o magistério e o jornalismo brasileiro em sua época?
Como poeta, Gonçalves Dias é o autor do poema mais conhecido e recitado do Brasil: Canção do Exílio. Foi ele que deu a tonalidade técnica e conduziu a evolução do nosso romantismo ao mais alto patamar, tanto do Brasil como da Europa, então considerada a medida de todas as produções poéticas e literárias. Não só na poesia, revelou-se o gênio de Gonçalves Dias: foi etnógrafo, historiador, jornalista, cronista e dramaturgo. No magistério, destacou-se como professor no Colégio Imperial Pedro II e na intensa pesquisa que fez sobre nosso sistema educacional.
Gonçalves Dias era conhecido também como poeta indigenista, qual o legado que ele deixou para a causa indígena brasileira, um tema tão atual nos tempos presentes?
Valiosa a posição de Gonçalves Dias em defesa da causa indígena. Se Gonçalves Dias ainda estivesse vivo, com certeza estaria ao lado dos indígenas atuais na luta por seus direitos. O legado que ele deixou em favor dos povos originários foi o reconhecimento dos seus valores culturais e sua importância na edificação do país.
Das obras indianistas de Gonçalves Dias destacam-se Canção do Tamoio, Os Timbiras, I-Juca-PIrama, O Canto do Piaga e Leito de Folhas Verdes. Como entender hoje esse enfoque nada lírico abordado com tanta ênfase pelo grande poeta da literatura brasileira?
Esses poemas despertaram a consciência nacional sobre a existência desses heróis anônimos que representavam a identidade nacional. Pode-se perceber que a inspiração gonçalvina pela causa indígena já continha um grito de alerta para a importância pelo reconhecimento das agendas atuais desses povos.
Pela inspiração de Gonçalves Dias ao realçar a palmeira do Babaçu e o canto do Sabiá – estando ele na Europa –, o clássico Canção do Exílio tinha mais a ver com romantismo ou com o meio ambiente, tema na época fora do padrão literário?
A Canção do exílio é uma canção inserida no movimento romântico, mas com as tintas do estilo e das inovações técnicas do gênio do poeta de Caxias. Impulsionado pela saudade da pátria, Gonçalves Dias elaborou o poema mais “sublime” do romantismo brasileiro, tanto que o Hino Nacional captou dois versos dele em sua composição. Como poeta, ele também era profeta. Então, extrai-se desse poema uma mensagem ambientalista de conservação da natureza que teria aplicação mais além do ano em que foi produzida.