Não à censura. Não ao ativismo judicial. Sim à democracia. Sim à liberdade.

Por Otavio Torres Calvet

Sou magistrado. Juiz do Trabalho. Vitalício.

Sou professor. Mestre e doutor em Direito. Atuo como jurista.

Fiz um juramento: defender a Constituição e as leis do país.

Preciso acreditar no que vivo, no que pratico.

A Loman (Lei Orgânica da Magistratura Nacional) autoriza em seu artigo 36, III a crítica a decisões judiciais através de obras técnicas ou no exercício do magistério.

O presente artigo constitui a expressão do meu entendimento, como jurista, da decisão proferida pelo Tribunal Superior Eleitoral que a mídia vem enquadrando como censura, principalmente no que diz respeito à proibição da emissora Jovem Pan em expressar determinados conteúdos contrários a um dos candidatos à presidência da República e ao canal Brasil Paralelo de publicar documentário sobre o atentado a Jair Bolsonaro em 2018.

Poderei ser perseguido, lacrado, cancelado ou mesmo exonerado da magistratura? Possível. Já passei por algo semelhante, quando critiquei decisão judicial de uma colega no caso da dispensa em massa feita pela churrascaria Fogo de Chão durante a pandemia.

Na época, respondi a procedimento administrativo instaurado pela Corregedoria e, depois de cinco horas de deliberação pelo Pleno do TRT do Rio de Janeiro, houve o arquivamento por não atingido o quórum necessário para abertura do processo disciplinar contra mim.

Talvez, então, sofra tudo de novo. E obviamente o primeiro ponto é refletir o motivo dessa exposição pública. Simples. Porque eu preciso acreditar no Estado Democrático de Direito. Preciso acreditar que a minha profissão é real, que, como magistrado, confio no Poder Judiciário e, talvez, esta seja a minha melhor contribuição para o jurisdicionado e para o país.

Se eu, magistrado, não acreditar que posso exercitar meus direitos com medo do próprio Poder Judiciário, de fato seria o fim. Firme, então, na lei que rege a minha profissão, na Constituição da República, que garante a liberdade de expressão, e na liberdade de cátedra, vou em frente.

A perplexidade começa com o contraste entre os Princípios de Bangalore, que trazem os valores que informam nossa carreira, e o que hoje está estampado na mídia, sobre a imparcialidade da magistratura.

Como se observa dos comentários publicados pelo Conselho da Justiça Federal“A imparcialidade é essencial para o apropriado cumprimento dos deveres do cargo de juiz. Aplica-se não somente à decisão, mas também ao processo de tomada de decisão”.

Tal qual a célebre frase, “a mulher de Cesar não basta ser honesta, deve parecer honesta”, a magistratura não basta ser imparcial, deve parecer imparcial. E não sou eu quem cria esta máxima. Está, novamente, nos Comentários ao Princípio de Bangalore acima mencionado:

“Percepção de imparcialidade

52. A imparcialidade é a qualidade fundamental requerida de um juiz e o principal atributo do Judiciário. A imparcialidade deve existir tanto como uma questão de fato como uma questão de razoável percepção. Se a parcialidade é razoavelmente percebida, essa percepção provavelmente deixará um senso de pesar e de injustiça realizados destruindo, consequentemente, a confiança no sistema judicial. A percepção de imparcialidade é medida pelos padrões de um observador razoável. A percepção de que o juiz não é imparcial pode surgir de diversos modos, por exemplo, da percepção de um conflito de interesses, do comportamento do juiz na corte, ou das associações e atividades do juiz fora dela.”

O ponto, portanto, não é questionar se os ministros do Tribunal Superior Eleitoral, ou outros magistrados de todas as instâncias, são parciais, mas se estão gerando na sociedade tal percepção. E basta examinar as redes sociais, as manchetes, as conversas entre conhecidos, os almoços de família, para constatarmos que existe, sim, um mal estar generalizado neste sentido.

Algo não está sendo feito da melhor forma possível. Fruto, talvez, da cultura recente de exposição midiática de decisões judiciais, do fenômeno da judicialização da política, da dificuldade de compreensão do povo quanto às idas e vindas dos entendimentos da magistratura.

Realmente é complicado as pessoas compreenderem, no caso do candidato Luiz Inácio Lula da Silva, a sua atual situação jurídica quanto às ações criminais que tramitam perante a Justiça Federal. O fato é que houve condenação em primeiro grau, em segundo grau e no Superior Tribunal de Justiça, e, após, decisão do Supremo Tribunal Federal anulando os julgamentos por questão de competência, voltando as ações ao ponto inicial.

No momento, portanto, inexiste condenação pendente, vigorando a presunção de inocência prevista em nossa Constituição. O futuro dirá, após o trâmite das ações, o resultado final acerca da inocência ou não de Lula. Simples assim.

Seria melhor para a preservação da percepção da imparcialidade do Poder Judiciário, creio, deixar os meios de comunicação se expressarem da forma como entendem a questão, cabendo ao cidadão formar seu convencimento após o livre debate de todas as vertentes, buscando os canais que lhe passem credibilidade.

Impedir qualquer veículo de expor fatos, a ponto dos seus comentaristas e apresentadores receberem orientação jurídica para não usarem expressões sobre o candidato Lula, como “ex-presidiário” e “descondenado”, fere o óbvio, o senso comum do cidadão que, há pouco tempo, inclusive, fez romarias para a porta da prisão no movimento “Vigília Lula Livre”.

Ora, se ele não era presidiário, por qual motivo as pessoas se direcionavam à porta da prisão para exigir sua liberdade? Colegas aqui do meu tribunal, inclusive, encamparam tais romarias, chegando a responder a questionamentos das corregedorias em procedimentos que foram, corretamente, arquivados, pois a liberdade de expressão e manifestação do magistrado, que não configure prática de política partidária, são garantidas pela Loman.

O segundo ponto, que há anos debatemos internamente, são os limites da decisão judicial, que traz o problema do ativismo judicial.

Ativismo, aqui, sem nenhuma conotação política, muito menos político partidária, mas no sentido de como deve proceder o magistrado ao interpretar e aplicar a Constituição e as leis do país.

Como já defendi algumas vezes, e não estou sozinho neste debate, o Poder Judiciário, que não detém de legitimidade pelo voto, precisa se justificar pelo fundamento de suas decisões, exercendo sempre a autocontenção, atuando como o fiel da balança dos demais Poderes da República, sempre forte na defesa da Constituição. Saber os limites e gerar essa confiança para a sociedade. Daí a enorme crítica que o voto da ministra Carmem Lúcia está recebendo, com todas as vênias, quando justificou uma espécie de suspensão de valores consagrados na Carta Magna até o segundo turno das eleições, nos seguintes termos como publicado no jornal O Globo:

“— Não se pode permitir a volta de censura sobre qualquer argumento no Brasil. Este é um caso específico e que estamos na eminência de ter o segundo turno das eleições — ressaltou.

A ministra ainda destacou que, caso a decisão indique algum ‘cerceamento à liberdade de expressão’, a decisão deve ser revista.

— (…) Mas com esse cuidado de se imaginar que, o relator principalmente, que é quem dirige o processo, tiver qualquer tipo de informação do sentido de que isto desborda ou configura algum tipo de cerceamento à liberdade de expressão precisa de ser reformado, inclusive a liminar — pontuou.”

A percepção da sociedade, como é notório, findou por gerar a sensação de retorno da nefasta prática da censura, há anos erradicada de nosso país, gerando medo na expressão do que se pensa, dificultando o trabalho de jornalistas e, portanto, afetando a própria democracia.

Não podemos perder a confiança no Poder Judiciário, nem querer, após as eleições, iniciar uma espécie de revanchismo quanto à magistratura, muito menos calar ou exonerar seus integrantes.

Precisamos aprender com tudo que está acontecendo. Como o ministro Luis Roberto Barroso nos ensina, em brilhante artigo“o ativismo judicial, até aqui, tem sido parte da solução, e não do problema. Mas ele é um antibiótico poderoso, cujo uso deve ser eventual e controlado. Em dose excessiva, há risco de se morrer da cura. A expansão do Judiciário não deve desviar a atenção da real disfunção que aflige a democracia brasileira: a crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade do Poder Legislativo. Precisamos de reforma política. E essa não pode ser feita por juízes”.

Da minha parte, não tenho dúvidas, já chegamos na “dose” máxima do ativismo. Está na hora de recalcularmos a rota para, jamais, voltarmos a ter censura, temor ou qualquer tipo de perseguição ideológica em nosso país.

Quanto a mim, seja o que Deus quiser.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2022-out-25/trabalho-contemporaneo-nao-censura-nao-ativismo-judicial-sim-democracia (os negritos não constam no original).

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