De repente, pego-me em reminiscências tantas e serenas, as quais me remetem aos bons tempos em minha querida cidade de Pinheiro, onde a felicidade realmente cristalizava-se em brinquedos simples e funcionais, geralmente improvisados com quinquilharias encontradas nas ruas, nas despensas e nos imensos quintais das casas de nossos pais e arquitetados na nossa mais profícua engenharia pueril; em “peladas” diárias, “labutadas” nos terrenos baldios, nas quadras, nas praças, nas ruas ou às margens do rio; em banhos no rio, nosso regaço sagrado, saudado pelo fulgurante lusco fusco de mais um dia, bem vivido; em banhos na chuva, no mês de maio, nas “biqueiras” fantásticas, que faziam a nossa alegria e renovavam as nossas vidas; em festejos, quermesses, show de calouros, que nos irmanavam inapelavelmente em um apego sem limites por nossa terra (…)
Entretanto, às nossas jornadas, estava assegurado um futuro promissor; e essa paz perene, abruptamente, era quebrada, com a necessidade que tínhamos de alçar voos mais promissores, novas conquistas, novos conhecimentos; quando, aí, sim, começava uma verdadeira odisseia: a viagem à capital do estado, com o intuito de fazer cursinho e buscar uma vaga em uma universidade pública (UFMA ou UEMA).
“O cordão umbilical”, enfim, era irremediavelmente quebrado, e nos deparávamos com a real situação: sem o cotidiano pinheirense, sem irmãos, sem amigos, sem aurora, sem horizonte “infinito”, sem brinquedos, sem porto seguro. Eis que surge a primeira viagem longa e a mais dorida separação dos nossos, o que antes nunca havia sido, sequer, cogitado.
Nesse cenário, o meu desenlace deu-se nos anos 80, ao me mudar para São Luís, com o intuito de estudar, uma prática “normal”, naqueles tempos, quando tínhamos de enfrentar o Itaúna e ser massacrados por maruins, sedentos e implacáveis. Entretanto, o maior e mais apavorante desafio era atravessar o temível “bouqueirão”, em barcos ou lanchas, de madeira, rangentes, chorosos e insanos, em uma travessia insalubre, em um ambiente dantescamente sufocante pelo ar pesado, impregnado com óleo queimado, nauseabundo, provocador de vômitos, dores de cabeça, ânsias (… ) misturado aos odores, nem sempre agradáveis, de farinha, porcos, bodes, camarão, bodum e tantos e indecifráveis perfumes baratos, minâncora (…)
Eram sacolejares frenéticos, principalmente nas tardes bravias de agosto, quando os ventos tornavam-se rebeldes e as ondas gemiam em sinal de protesto, por serem interrompidas em suas sestas, sagradas e guardadas pelas bênçãos del rei Sebastião.
Somente após essa aventura, estávamos “batizados”, para enfrentar nova vida, novas descobertas, novos conhecimentos.
(Texto do livro RAÍZES – recortes de minha existência)
Zé Carlos