Um dia desses, estando na fila de um supermercado, me peguei longe, muito longe, ao ver as filas se arrastarem e se alimentarem, como se nunca fim tivessem. E, para surpresa minha, começaram a desfilar, em minha mente, cenas, que muito presenciei em minha infância.
Bons exemplos disso eram o preguiçoso e gemente rodar dos carros de boi, a “chiar” as mais tristes cantigas, quando o dia se iniciava, a invadir as sacras veredas da Baixada; e o compassado e leve andar dos bois cavalo e da mulas, “surgentes” no horizonte azul, inflados e perdidos em meio às gigantescas cargas; para depois, tão chochos, voltarem engolidos pelas magricelas cangalhas, como se fossem vítimas de uma bem sucedida bariátrica. E o “franzino e rijo cabôco” a acompanhar, no mesmo passo, se deixando levar em moroso marasmo, como se parasse a vida para lhe dar passagem.
O mais cruel, no entanto, era espiar “a deslealdade feroz do escambo”, a devorar a força bruta e a dignidade daqueles, que já eram, impiedosamente, castigados por tão implacável lida no eito. Quão trucidados eram “pela fome, sem fim, do comércio”. Muitos e muitos quilos de babaçu; e somente “uminha” quarta de café, meio quilo de açúcar, “um litro de criosene”, um pedacinho de “fumo de mólho”. O único alento, que lhe restava, era o “olhá cumprido pru lado dum vivo ispelinho, tão cobiçada e cara joia, qui discansava nais imundas partileiras”. Só um sonho, a mais, adiado.
E, no fim das contas, restava o sofrido e cansado “cabôco”, que, para piorar, “inda ia ser anotado no vil, amarrotado e ladravaz caderninho”, do qual nada desconfiava “nem tinha ciência” daquele conteúdo tão voraz. Sempre “devente”, até o suspiro final.
E eu, na bendita fila, a achar “qui us tempo são ôtos”. Que, por depravada ironia, estamos progredindo. Mas … o certo, o certo mesmo, é que o faminto escambo se modernizou!