Por Gracilene Pinto
Georgette Desrochers é uma missionária religiosa procedente de rica família de Québec, no Canadá, que foi Madre Superiora da nossa escola durante brevíssimo tempo, suficiente, no entanto, para me marcar para o resto da vida.
De sua boca ouvi que, por seus pais lhe fora determinado, praticamente desde o nascimento, o casamento com um homem de uma família amiga. Porém, Georgette não sentia pelo prometido o afeto necessário para dedicar-lhe toda sua vida. Também, não lhe agradava passar toda a existência entre chás com as amigas; festas de caridade e desfiles de moda, vida que geralmente levavam a maioria das senhoras ricas da sociedade. Por isso, pediu algum tempo para estudar, assumindo o compromisso de que, depois de formada trataria do casamento.
Porém, uma vez formada, Georgette postergou o casamento para o final da segunda graduação. E depois, da terceira. E, quando cobrada pela procrastinação para com o compromisso, finalmente, deixou claro para a família e para o noivo que não queria casar-se, pois não iria desperdiçar todo conhecimento adquirido em uma vida de frivolidades.
Decidira ingressar em uma ordem religiosa e servir a Deus e aos semelhantes como missionária. E assim o fez.
Deste modo foi que, em sua peregrinação pela África, Brasil, etc., Georgette veio parar em um dos bairros mais pobres da Capital do Maranhão, o São Francisco, separado do centro da cidade pelo Rio Anil, cujo acesso era feito em pequenas lanchas e canoas de zinga.
O subúrbio era paupérrimo. Uma invasão, onde proliferavam, em sua maioria, pequenos casebres de barro e palha, e onde a pobreza imperava absoluta, pois havia carência até de água. Mas, foi para aí que Georgette foi enviada por Deus. Exatamente, onde mais precisavam dela.
Juntamente com outras irmãs de caridade, a maioria brasileiras, Georgette viera coordenar os trabalhos de construção de uma escola, o Grupo Escolar Desembargador Sarney. Porém, não obstante ter seu tempo bastante ocupado por suas obrigações para com a escola e com o convento improvisado, ainda tirava tempo para visitar os carentes e os enfermos, sempre levando alimentos e medicamentos na sacola, e muito amor e carinho no coração, carinho que demonstrava, não com palavras, mas com atitudes, quando dava banho em um doente acometido pela catapora, quando enxugava o nariz de uma criança gripada; ou mesmo, quando orientava uma criança de condição humilde, mostrando-lhe caminhos que lhe possibilitassem mudar seu futuro, independentemente de como se apresentassem as circunstâncias momentâneas.
Era assim, Georgette Desrochers, uma vida onde servir era seu maior objetivo. Provavelmente, por isso era uma pessoa alegre, sonhadora e empreendedora.
Se com minha mãe aprendi a sonhar e a querer mais da vida, Georgette mostrou-me caminhos que me auxiliariam a alcançar o sonho.
Mas, foi comigo mesma, em uma ocasião em que participei de um projeto para nós idealizado por ela, que eu aprendi que, antes de tudo, é preciso acreditar em nós mesmos. Acreditar em nosso potencial. Acreditar que somos capacitados para a vitória, independente das circunstâncias. E esta lição me veio de forma inusitada.
Ocorreu que a nossa escola, recém construída em um dos subúrbios mais pobres da Capital, iria participar de importante certame, um Festival de Coros, onde concorreria com coralistas das instituições mais ricas e tradicionais da cidade.
Dado a importância do concurso e o nível dos concorrentes, logo me pus a sonhar com um terceiro lugar. Isto, já me faria muito feliz, pois falar do primeiro lugar entre coralistas tão mais experientes e com condições materiais que jamais poderiam igualar-se às nossas, parecia um sonho tão impossível como alcançar a lua.
Mal sabia eu, então, que Deus não escolhe capacitados, mas capacita os escolhidos. Porém, a Irmã Georgette já sabia disso.
Ela sabia que Deus é poder e que todas as suas criaturas nascem capacitadas para a vitória, desde que lhes sejam oferecidas as condições necessárias para atingir o pódio.
Por isso, juntamente com a nossa regente, a Irmã Elcita, passou a nos exercitar vocalmente com ensaios diários. Ela tinha bom ouvido e era exigente, pois sabia que somente com muito esforço conseguiríamos igualar-nos ao nível dos nossos adversários.
Impossível deixar de mencionar as dificuldades enfrentadas durante o período dos ensaios, entre as quais podemos registrar, a falta de dinheiro dos nossos pais para a compra das pelerines (capas compridas sem mangas que se põe sobre os ombros) brancas de cambraia; e também fardas, sapatos e meias novos, porque os nossos, geralmente, se achavam por demais surrados; sem falar nas horas exaustivas de treinos, muitas vezes mal alimentados. Porém, animados pelo sonho sequer lembrávamos da fome, a não ser quando o estômago, escandaloso, resolvia roncar.
Vencida essa primeira etapa de dias e dias de exercícios vocálicos e treinos; de preocupação das nossas mães por nos vestir de modo apresentável, a fim de não passarmos vergonha diante dos mais abastados moradores do centro da cidade; de tomada de providências por parte das religiosas da irmandade São José, no sentido de conseguir transporte que nos levasse até o local do evento, e chegou, enfim, o momento do tira-teima.
No dia marcado para a primeira eliminatória, atravessamos o Rio Anil em uma canoa movida à zinga pelo canoeiro. O embarque carecia de muito cuidado para não sujar nossas fardas limpinhas e bem passadas a ferro, pois a maré estava seca e a canoa aportou em um local lamacento. O desembarque não foi diferente, pois não poderíamos permitir que as águas que açoitavam o Cais da Sagração molhassem nossas fardas novas.
Na Praia Grande, já uma Kombi da Irmandade São José aguardava para nos levar até o Colégio Santa Teresa, onde aconteceria o evento. Fariam duas viagens para levar todo mundo, pois o grupo era grande. Porém, logo na subida da Rampa do Palácio a Kombi, muito velha, resolveu quebrar. O que logo foi resolvido pela nossa Georgette que, sem titubear, meteu a mão na massa e consertou o veículo.
No Colégio Santa Teresa, após as apresentações, ficamos aguardando a comissão julgadora divulgar os resultados. Eu, sempre na torcida para que conseguíssemos o terceiro lugar.
O apresentador começou, como de praxe, pelo décimo lugar. A estudantada em pé, aplaudindo a cada resultado. Eu, também de pé e muito nervosa, aguardava com ansiedade o anúncio do nosso almejado terceiro lugar que, para minha decepção, não veio. O terceiro lugar foi para outra escola, que não lembro mais. Então, sentei-me antecipadamente vencida. O anúncio do segundo lugar, que também não fomos nós, já não me causou nenhum espanto, tão mergulhada estava em minha tristeza. Mas, foi então, que o mestre de cerimônia anunciou alto e em bom som: PRIMEIRO LUGAR, GRUPO ESCOLAR DESEMBARGADOR SARNEY!
Esse momento foi decisivo em minha vida, pois ali aprendi que posso ser tudo que eu sonhar, tudo que eu quiser e que Deus permitir, porque o céu é o limite para quem sonha com aquilo que é justo e bom, e que jamais devo aceitar limitações aos meus sonhos.
Muitos anos depois ouvi do Professor Doutor José Maria Cabral Marques, que nem sabia que eu havia cantado no coral do Grupo Escolar Desembargador Sarney, um depoimento que me levou às lágrimas. Durante uma aula no curso de Direito da Universidade Federal do Maranhão, falando sobre suas experiências como educador e Secretário de Educação do Estado do Maranhão, Cabral Marques referiu-se ao nosso grupo coral como verdadeiro coro de anjos, completando que, ele, que em suas viagens pelo mundo a performance dos melhores corais de Viena, na Áustria, pudera ver que as crianças do São Francisco nada deviam aos melhores coralistas de Viena. Só precisavam, tal como aquelas, ser lapidadas.
Mas, se a Irmã Georgetti Desrochers não tivesse acreditado em nosso potencial e ela e a Irmã Alzerina não nos houvessem lapidado tão bem, jamais teríamos conseguido esse primeiro lugar.