Autora: Gracilene Pinto
Dona Severina já vivia há muito tempo, como diz o populacho, na “idade do condor”. Com dor aqui, com dor ali, passava seus dias a gemer, coitada.
– Ai, delho! Ai, delho! Mandei chamar Sirvana, Sirvana num veio. Vida de véio é mermo assim, ninguém liga mais da gente. Num se presta pra nada! Ai, delho! Cuma se num bastasse as dor, inda me deixam sem cumê. Ai, delho! Ai, qui fome!
– Mãe Velha, dizia a neta Das Dores, a sinhóra é capaz de falar mal de Deus. Terminô de almuçá agorinha. E se mamãe ainda não veio é porque deve tá ainda trabalhando na farinhada.
– Quem?! Eeeeuu qui cumi? Tu tá é mentindo! Tu come a cumida toda e adispois me dexa cum fome, pequena mintirosa. Ai, delho!
Com seus oitenta e tantos anos, entre todos os males que lhe atormentavam a vida, como o reumatismo que já quase não a deixava caminhar, dona Sivica, como era chamada na comunidade, também havia o tal do alemão, o Alzeimer. Por conta disso esquecia das coisas, tinha acessos de fúria e momentos de grande saudosismo.
Morava com a anciã sua neta Das Dores, mulata de alma quente e corpo bem modelado, que há muito tempo já dera com os burros n´água, quando sucumbira às cantadas de um primo e deixara a virgindade atrás da moita no caminho do poço. Desde então, não enjeitava parada, só tinha cuidado para que a avó não soubesse das suas aventuras. Porém, confiante na demência de Dona Sivica, muitas vezes, às tantas da noite a moça levava os namorados para a redinha de fio armada no canto da camarinha da pequena casa de barro e palha.
Ocorre que, dona Sivica dormia na sala, sua rede estrategicamente armada no canto, bem na direção da porta que dava para a camarinha, permitindo-lhe, até certo ponto, vigiar Das Dores, para evitar que a neta caísse na sem-vergonhice.
E assim, já que as dores no joelho e no corpo todo não deixavam dona Sivica dormir, a anciã passava as noites entre uma baforada e outra do cachimbo de barro a gemer, a reclamar da vida ou a lembrar dos bons tempos da mocidade.
Nessa noite Das Dores já estava deitada, mas combinara previamente com o namorado que deixaria a porta de meançaba apenas encostada. Assim que a avó adormecesse, a moça faria um sinal para que o rapaz entrasse discretamente a fim de deitar-se com ela. O sinal seria um miado de gato.
Dona Sivica demorou um tempão falando, falando. Então, quando Das Dores ouviu o ressonado da avó imediatamente imitou o gato e o rapaz entrou, tentando ser o mais silencioso possível. No entanto, para chegar ao paraíso, que era a rede de Silvana, o homem precisava vencer sérios desafios. O primeiro e maior deles, seria passar por debaixo da rede de dona Sivica, tendo em vista que sono de velho quase sempre é muito leve. Depois, como localizar o penico naquela escuridão para não enfiar os pés ou as mãos no mijo? Mas, como paixão não mede distância nem dificuldades, corajosamente o moço agachou-se e começou a arrastar-se por debaixo da rede. Porém, terminou roçando na rede que estava muito baixa. Com muito jeito tentou levantar a rede devagarinho segurando pelos punhos, e só se ouviu a voz esganiçada da velha reboando no casebre:
– Quem tá aí?!!
– Quem havéra de tá, Mãe Véia? Só pode sê gato. – respondeu Das Dores do quarto.
– Gato num tem mão de guente! Gato num tem mão de guente! – declarou a anciã em um momento de rara lucidez.